sábado, 23 de maio de 2015

Restos de Carnaval

                                                                                                              Clarice Lispector

           Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.
           No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.
           E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.
          Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça - eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável - e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.
          Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com os quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.
          Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga - talvez atendendo a meu mudo apelo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel - resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.
          Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas - àidéia de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na rua, morríamos previamente de vergonha - mas ah! Deus nos ajudaria! não choveria! Quando ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola.
          Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! Chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.
          Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge - minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa - mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil - fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.
          Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido, sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.

          Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.
A Cartomante
                                                                                                                          Machado de Assis

         Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de Novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.
          — Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade...
         — Errou! Interrompeu Camilo, rindo.
         — Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...
         Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois...
         — Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.
         — Onde é a casa?
         — Aqui perto, na rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca.
         Camilo riu outra vez:
         — Tu crês deveras nessas coisas? perguntou-lhe.
          Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muito cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranqüila e satisfeita.
        Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se, Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento; limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.
         Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda velha, olhando de passagem para a casa da cartomante.
          Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura, e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.
          — É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo; falava sempre do senhor.
          Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vente e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.
         Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.
         Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam.
          Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas.
          Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.
          Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.
          Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível.
           — Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com a das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...
          Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas.
           No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a notícia da véspera.
           — Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele com os olhos no papel.
           Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando na pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto.
          Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então, — o que era ainda peior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. "Vem já, já à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Ditas, assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéa, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo.
           — Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim...
          Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar; a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino.
          Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar a primeira travessa, e ir por outro caminho; ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:
          — Anda! agora! empurra! vá! vá!
          Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras cousas; mas a voz do marido sussurrava-lhe às orelhas as palavras da carta: "Vem já, já..." E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários; e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: "Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia..." Que perdia ele, se...?
          Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para os telhados do fundo. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.
          A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas.       Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe:
          — Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...
          Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo.
          — E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou não...
          — A mim e a ela, explicou vivamente ele.
          A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez as cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso.
          — As cartas dizem-me...
          Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável mais cautela; ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.
          — A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante.
Esta levantou-se, rindo.
          — Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...
          E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.
          — Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar?
          — Pergunte ao seu coração, respondeu ela.
          Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis.
          — Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...
          A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo.
         Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo.
          — Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.
          E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer cousa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá, vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.
          A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável.
          Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.
          — Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?
         Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensanguentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.

Este conto foi publicado originalmente na 
Gazeta de Notícias - Rio de Janeiro, em 1884. Posteriormente foi incluído no livro "Várias Histórias" e em "Contos: Uma Antologia", Companhia das Letras - São Paulo, 1998, de onde foi extraído.


quarta-feira, 5 de março de 2014


Exercício: Barroco

01. (UPE 2014) Sobre a produção dos principais ícones da estética barroca brasileira, analise os itens abaixo:
I. O Sermão da sexagésima, que é metalinguístico e um dos mais conhecidos de Vieira, apresenta, como tema, a própria arte de pregar. Como se pode notar no trecho: “[...] como os Apóstolos iam pregar a todas as nações do Mundo, muitas delas bárbaras e incultas, haviam de achar os homens degenerados em todas as espécies de criaturas: haviam de achar homens brutos, haviam de achar homens troncos, haviam de achar homens pedras [...]“.

II. No trecho do Sermão do bom ladrão Alguns ministros de Sua Majestade não vêm cá buscar o nosso bem, mas cá vem buscar os nossos bens”, observase que, na passagem “Vem cá versus cá vem o nosso bem versus os nossos bens”, a oposição singular versus plural é bastante significativa, pois assegura a distinção entre o concreto e o abstrato, o que também é reforçado pela polissemia do verbo “buscar”, equivalente a “promover”, no primeiro caso e a “apossarse”, no segundo.

III. O Sermão do bom ladrão, publicado em 1655, exemplo do estilo conceptista de Vieira, traz, em tom jocoso, referências universais e atemporais do ato de furtar, produzido por autoridades, como se vê em: O ladrão que furta para comer, não vai nem leva ao inferno: os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões de maior calibre e de mais alta esfera [...]”.

IV. Marcada pelo dualismo da tendência barroca, quase sempre em estilo cultista, a poesia lírica amorosa de Gregório de Matos ora apresenta a mulher como um ser ideal, espiritualizado e de postura platônica, ora a apresenta de maneira erótica, como um elemento de desejos mundanos, como fica sugerido no trecho:
Mas vejo, que por bela, e por galharda / Posto que os Anjos nunca dão pesares, / Sois Anjo que me tenta, e não me guarda”.

V. Em sua poesia satírica, Gregório de Matos, por respeito aos religiosos, deixou de retratá-los e censurou apenas as mais diversas figuras civis e militares do Brasil de então. Assim também o fez com as contradições do sistema colonial vigente no país. A exemplo do que se afirma nos versos Triste Bahia! Ó quão dessemelhante / Estás e estou do nosso antigo estado! / Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado, / Rica te vi eu já, tu a mi abundante.

Estão corretos, apenas,
a) I, II, III e V.    b) II, III, IV e V.     c) I, II, IV e V.   d) I, II, III e IV.        e) I, III e V.

Soneto II

      (Descreve um horroroso dia de trovões)

Na confusão do mais horrendo dia
Painel da noite em tempestade brava,
O fogo com o ar se embaraçava 
Da terra e água o ser se confundia.

Bramava o mar, o vento embravecia
Em noite o dia enfim se equivocava,
E com estrondo horrível, que assombrava,
A terra se abalava e estremecia.
Lá desde o alto aos côncavos rochedos,
Cá desde o centro aos altos obeliscos
Houve temor nas nuvens, e penedos.

Pois dava o Céu ameaçando riscos
Com assombros, com pasmos, e com medos
Relâmpagos, trovões, raios, coriscos.
                              Gregório de Matos.

02. (UPE 2014) Considerando o texto, tanto no âmbito da estrutura da linguagem quanto no âmbito da temática, analise as afirmativas a seguir:
I. O eu lírico na poesia em análise ironiza a situação climática e deflagra certo telurismo sacro.
II. O eu lírico, desde a primeira até a última estrofe, demonstra sentir receio.
III. O dia, caracterizado como “horrendo”, impressiona o eu lírico e o amedronta.
IV. “Em noite o dia enfim se equivocava” é um verso que ratifica a tendência eufêmica do autor.
V. “A terra se abalava e estremecia”, embora seja uma expressão exagerada, coaduna-se com o tema central do texto.

Estão corretas:
a) I, II e III.            b) I, II e IV.       c) II, III e IV.         d) II, III e V.          e) III, IV e V.

03. (UPE 2014) Considerando os estudos sobre os fundamentos sociais e históricos, estéticos e ideológicos, que sustentam a literatura barroca no Brasil, assinale a alternativa correta.
a) A literatura seiscentista ou a literatura barroca, como também é conhecida no Brasil, tem, nas figuras de linguagem eufemismo e oximoro, suas principais referências lexicais.
b) Um texto barroco, quando assim caracterizado, reflete a imagem de um ser humano harmônico com os seus pensamentos e sentimentos, com suas ideologias e identidades
c) A poesia barroca de Gregório de Matos assim como a prosa barroca de Padre Antônio Vieira possuem diferenças que as contrapõem de modo decisivo.
d) A antítese, o paradoxo e a hipérbole são figuras de linguagem sazonalmente utilizadas nos textos barrocos, logo, a poesia barroca tende a ser por demais referencial.
e) Gregório de Matos e Padre Antônio Vieira são importantes escritores da literatura seiscentista cujos textos são relevantes para a literatura brasileira da época.

        E pois cronista sou
Se souberas falar também falaras
também satirizaras, se souberas,
e se foras poeta, poetaras.
Cansado de vos pregar
cultíssimas profecias,
quero das culteranias
hoje o hábito enforcar:
de que serve arrebentar,
por quem de mim não tem mágoa?
Verdades direi como água,
porque todos entendais
os ladinos, e os boçais
a Musa praguejadora.
Entendeis-me agora?

Permiti, minha formosa,
que esta prosa envolta em verso
de um Poeta tão perverso
se consagre a vosso pé,
pois rendido à vossa fé
sou já Poeta converso
Mas amo por amar, que é liberdade.
             (Gregório de Matos)

04. (Covest)
0-0) ‘Boca do Inferno’ é o apelido que Gregório de Matos recebeu por dedicar parte de sua produção poética à crítica, muitas vezes satírica, à corrupção e à hipocrisia da sociedade baiana.

1-1) Na primeira estrofe, o poeta considera que, se seu interlocutor soubesse falar, satirizar ou poetar, assim como sabe o poeta, não calaria seu poder de crítica.

2-2) No poema é invocada a Musa praguejadora, como alusão à Musa inspiradora, levando, assim, o leitor a inferir que o poeta fará uma crítica maldizente.

3-3) Ao final do poema, o eu poético declara amar a liberdade, dando a entender que se sente bem em falar de sua poesia, visto que é livre e ama a liberdade.

4-4) O poema em análise é característico da estética barroca, pois, do ponto de vista estilístico, joga com os opostos, fazendo uso frequente da antítese.

05.(EPCAR)

       A Jesus Cristo Nosso Senhor
Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,
Da vossa alta clemência me despido;
Porque quanto mais tenho delinquido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido;
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida e já cobrada
Glória tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na sacra história,
Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada
Cobrai-a; e não queirais, pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.
                         (Gregório de Matos)

I - A primeira estrofe enfoca o perdão, a falta (pecado) e a esperança experimentados pelo poeta.
II - A segunda estrofe explora oposição através das palavras irar/abrandar. A misericórdia do Senhor é maior do que os pecados do poeta.
III - O primeiro terceto faz uma alusão à ovelha perdida, que aparece em uma passagem bíblica. A ovelha, no entanto, é “cobrada” por causa do comportamento errado dela.
IV - No segundo terceto, o poeta ainda se volta para Deus, lembrando o caso da ovelha desgarrada. O “Senhor” deve ser exigente com a ovelha, pois se não fizer isso pode, a ovelha, perder a glória.

Estão INCORRETAS apenas
a) I e II.     b) II e III.     c) I e IV.      d) III e IV.

06. (EPCAR) Analise o fragmento abaixo e as afirmações que sobre ele são feitas.
“(...) Parece-nos bem isto, peixes? Representa-se-me que com o movimento das cabeças estais dizendo que não e, com olhardes uns para os outros, vos estais admirando e pasmando de que entre os homens haja tal injustiça e maldade! Pois isto mesmo é o que fazeis. Os maiores comeis os pequenos: e os muito grandes não só os comem um por um, senão os cardumes inteiros, e isto continuadamente sem diferença de tempos, não só de dia, senão também de noite, às claras e às escuras, como também fazem os homens.”
                   (Padre Antônio Vieira)
I - Trata-se de uma passagem de um sermão. Nele os homens são comparados a peixes. Assim como um peixe devora outro, também o homem explora (come) outro homem.
II - O fragmento chama a atenção, também, para o tempo: os “peixes” se devoram o tempo todo. Os homens também.
III - Os ouvintes mostram-se admirados pelo que fala o pregador, pois, entre eles, não existe tal injustiça. O pregador, diante do espanto dos ouvintes, faz uma moderação tendenciosa no discurso: começa a falar de “peixes”, para não tocar diretamente no problema da exploração.
IV - O termo senão introduz uma exceção: nem todos dos “cardumes” se comem.

Está (ão) INCORRETA(S) apenas
a) III e IV.       b) I e III.      c) II e IV.       d) II.    e) I e II.
07. Leia atentamente o poema abaixo:

Nasce o Sol e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se é tão formosa a Luz, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se a tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.
         (MATOS, Gregório. 25 poemas. )
A respeito do soneto de Gregório de Matos, é INCORRETO afirmar:
a) O poeta, influenciado pelo classicismo, estabelece um paralelo entre os processos naturais e o percurso humano.
b) O poeta, inspirado no desconcerto do mundo camoniano, se queixa da brevidade da vida e da instabilidade do mundo.
c) O poeta, apesar da visão pessimista, observa que o destino das tristezas é de se transformarem em alegria.
d) O poeta, baseando-se numa constatação pragmática, afirma que a Luz e a formosura estão destinadas a desaparecer.
e) O poeta, imbuído no espírito Barroco que enforma a sua poesia, vê o mundo às avessas, em que o fugaz é o que permanece.

08. Na primeira estrofe do poema acima, a principal característica do Barroco é:
a) A forte presença de antíteses.
b) A idealização da natureza como espaço bucólico.
c) O emprego de sinestesia.
d) O envolvimento subjetivo com os elemento da natureza.
e) A preocupação religiosa.

09. Na literatura, a crítica social foi exercida de várias formas nas escolas literárias, sendo frequente a recorrência à ironia, à sátira e ao sarcasmo. Sobre o tema, avalie as proposições abaixo.
0-0) O poeta barroco Gregório de Matos escreveu muitas poesias satíricas, de feroz mordacidade, ridicularizando a sociedade colonial baiana de então. Extravasou desta maneira seu desengano do mundo, transformando, em alguns desses poemas, a realidade em caricaturas.

1-1) Pertencendo ao Arcadismo que floresceu em Minas Gerais, Tomás Antônio Gonzaga fazia parte do grupo dos Inconfidentes, que tramavam a independência do Brasil. E, por este motivo, ironizou os governantes e a sociedade da época, no seu poema Marília de Dirceu, em protesto aos desmandos e à autoridade exacerbada exercida pelo governador de Minas.

2-2) Pe. Antônio Vieira, barroco, em alguns dos seus Sermões, critica a vida social brasileira e portuguesa do século XVII, valendo-se de metáforas e referências, ora irônicas, ora sarcásticas, como no Sermão do Bom Ladrão, e no Sermão pelo Bom Sucesso das Armas de Portugal contra as da Holanda.

3-3) José de Alencar sempre descreveu, de forma crítica e com fina ironia, no tratamento e na composição dos personagens, o comportamento da Corte, espaço onde se situaram seus romances urbanos. Denunciou, assim, de forma contundente, a hipocrisia das altas rodas do Rio de Janeiro.

4-4) Manuel Antônio de Almeida, em sua narrativa de costumes Memórias de um Sargento de Milícias, já sinaliza com algumas das preocupações que vão caracterizar o Realismo, por descrever, de forma exata e minuciosa os usos, os costumes e as figuras típicas do Brasil do tempo de D. João VI. Com personagens do povo, em situações quase sempre grotescas, sua narrativa faz uma análise crítica e irônica dos costumes morais.

10. Sobre a literatura transplantada pela colonização portuguesa, podemos afirmar que:
0-0) o teatro foi introduzido no Brasil pelos Jesuítas, no século XVI, junto com a atividade de catequizar os índios.
1-1) a partir do século XVII, dissemina-se nos grandes centros de produção açucareira principalmente Bahia e Pernambuco.

2-2) são autores do Barroco: Pe. Antônio Vieira, Gregório de Matos e Cláudio Manoel da Costa.

3-3) em Gregório de Matos, aguça-se a oscilação da alma barroca entre o mundo terreno e a perspectiva de salvação. Esse autor deixou uma obra poética vasta e desigual, onde ressaltava como tema o amor, a religiosidade e a sátira à vida colonial.

4-4) apesar de estar mais próximo da Literatura Portuguesa do que da Brasileira, Pe. Antônio Vieira (português de nascimento) é considerado autor brasileiro. Mistura em sua obra, Os Sermões, medievalismo, messianismo, ideias avançadas e preocupação pelos costumes da sociedade colonial que se formava.

11. (UPE)

ÀS RELIGIOSAS QUE EM UMA FESTIVIDADE, QUE CELEBRARAM, LANÇARAM A VOAR VÁRIOS PASSARINHOS

            DÉCIMA

Meninas, pois é verdade,

não falando por brinquinhos,

que hoje aos vossos passarinhos

se concede liberdade:

fazei-me nisto a vontade

de um passarinho me dar,

e não devendo-o negar,

espero m’o concedais,

pois é dia em que deitais

passarinhos a voar.

       (Gregório de Matos. Poemas escolhidos.)

Sabe-se que Gregório de Matos, entre outros textos, teria escrito poemas satíricos, de caráter erótico-irônico. O poema acima é um exemplo disso. Os enunciados abaixo trazem alguns comentários sobre esse poema e sobre o contexto histórico em que se insere. Analise-os.

I. A sátira gregoriana consiste na brincadeira lançada a respeito de um fato que parece ter realmente ocorrido, como nos sugere o título. O efeito sarcástico ocorre pela ambiguidade da palavra ‘passarinhos’.

II. Foi tomando por referência poemas como este, entre outras razões, que Gregório de Matos ficou conhecido como ‘Boca do Inferno’.

III. O poema pode ser considerado barroco, pois aborda, claramente, um tema religioso, representado na figura das religiosas em ato de celebração.

IV. O subtítulo ‘Décima’ faz referência ao poema de estrutura fixa, composto por uma ou mais estrofes de dez versos. No Barroco brasileiro, esses versos costumam dispensar o recurso à rima.

V. A antítese, recurso retórico tão comum ao Barroco, predomina na composição deste poema, como revelam sobretudo os quatro primeiros versos.

A afirmativa é verdadeira nos itens

a) II, III e V.         b) I e II.          c) I, II e III.       d) I, II e IV.       e) II, IV e V.

Que falta nesta cidade? Verdade.
Que mais por sua desonra? Honra.
Falta mais que se lhe ponha? Vergonha.
O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta,
Numa cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha.
12. Pode-se reconhecer nos versos acima, de Gregório de Matos:
a) o caráter de jogo verbal próprio do estilo barroco, a serviço de uma crítica, em tom de sátira, do perfil moral da cidade da Bahia.
b) o caráter de jogo verbal próprio da poesia religiosa do século XVI, sustentando piedosa lamentação pela falta de fé do gentio.
c) o estilo pedagógico da poesia neoclássica, por meio da qual o poeta se investe das funções de um autêntico moralizador.
d) o caráter de jogo verbal próprio do estilo barroco, a serviço da expressão lírica do arrependimento do poeta pecador.
e) o estilo pedagógico da poesia neoclássica, sustentando em tom lírico as reflexões do poeta sobre o perfil moral da cidade da Bahia.

13. A gênese da formação da Literatura Brasileira se encontra no século XVI. Dela fazem parte
a) Os Lusíadas de Luís de Camões.
b) as obras dos degredados, obrigados a prestar contas à Coroa Portuguesa.
c) os escritos que, por gratidão, os donatários das capitanias mandavam a El-Rei.
d) os relatos dos cronistas viajantes.

14. Assinale o texto que, pela linguagem e pelas ideias, pode ser considerado como representante da corrente barroca.
a) "Brando e meigo sorriso se deslizava em seus lábios; os negros caracóis de suas belas madeixas brincavam, mercê do Zéfiro, sobre suas faces... e ela também suspirava."
b) "Estiadas amáveis iluminavam instantes de céus sobre ruas molhadas de pipilos nos arbustos dos squares. Mas a abóbada de garoa desabava os quarteirões."
c) "Os sinos repicavam numa impaciência alegre. Padre Antônio continuou a caminhar lentamente, pensando que cem vezes estivera a cair, cedendo à fatalidade da herança e à influência do meio que o arrastavam para o pecado."
d) "De súbito, porém, as lancinantes incertezas, as brumosas noites pesadas de tanta agonia, de tanto pavor de morte, desfaziam-se, desapareciam completamente como os tênues vapores de um letargo..."                                                         
e) "Ah! Peixes, quantas invejas vos tenho a essa natural irregularidade! A vossa bruteza é melhor que o meu alvedrio. Eu falo, mas vós não ofendeis a Deus com as palavras: eu lembro-me, mas vós não ofendeis a Deus com a memória: eu discorro, mas vós não ofendeis a Deus com o entendimento: eu quero, mas vós não ofendeis a Deus com a vontade."

Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza: o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres... O ladrão que furta para comer, não vai nem leva ao inferno: os que não só vão mas que levam, de que eu trato, são os outros - ladrões de maior calibre e de mais alta esfera... Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo de seu risco, estes, sem temor nem perigo; os outros se furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam.
                              (Padre Antônio Vieira, Sermão do Bom Ladrão)

15. Em relação ao estilo empregado por Vieira, neste trecho, pode-se afirmar:
a) O autor recorre ao Cultismo da linguagem com o intuito de convencer o ouvinte e por isto cria um jogo de imagens.
b) Vieira recorre ao preciosismo da linguagem, isto é, através de fatos corriqueiros, cotidianos, procura converter o ouvinte.
c) Padre Viera emprega, principalmente, o Conceptismo, ou seja, o predomínio das ideias, da lógica, do raciocínio.
d) O pregador procura ensinar preceitos religiosos ao ouvinte, o que era prática comum entre os escritores gongóricos. 
16.  A respeito de Pe. Vieira, pode-se afirmar:
a) Embora vivesse no Brasil, por sua formação lusitana não se ocupou de problemas locais.
b) Adequava os textos bíblicos às realidades de que tratava.
c)Dada sua espiritualidade, demonstrava desinteresse por assuntos mundanos.
d) Em função de seu zelo para com Deus, utilizava-o para justificar todos os acontecimentos políticos e sociais.
e) Mostrou-se tímido diante dos interesses dos poderosos.

17. Selecione a alternativa correta em relação ao seguinte soneto, de Gregório de Matos Guerra:                                                                        
A cada canto um grande conselheiro,                                     
Que nos quer governar cabana e vinha;                                
Não sabem governar sua cozinha,                                           
E podem governar o mundo inteiro                              

Estupendas usuras nos mercados,                                    
Muitos mulatos desavergonhados,
Trazidos sob os pés os homens nobres,
Postas nas palmas toda a picardia,                                           


Em cada porta um bem frequente olheiro,                           
Que a vida do vizinho e da vizinha                     
Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,                           

Para o levar à praça e ao terreiro.                              
Todos os que não furtam muito pobres:
E eis aqui a cidade da Bahia."

a) O soneto ressalta uma crítica aos desmandos das autoridades e à futilidade dos habitantes citadinos.
b) A temática revela reverência em relação àqueles que vivem honestamente sem ter a necessidade de explorar os mais humildes.
c) Neste poema, o poeta demonstra simpatia em relação aos mestiços, considerando-os importantes elementos no quadro de miscigenação racial.                                                  
d) No soneto evidenciam-se os bons costumes, a moral elevada dos habitantes do Brasil Colônia e o sentimento de solidariedade para com o próximo.
e) O poema vincula o autor à temática e aos princípios estéticos europeus ao elaborar uma poesia satírica voltada para os conflitos do homem barroco.

18. Assinale a alternativa que apresenta uma afirmativa incorreta em relação ao Barroco brasileiro:                                                                         
a) A literatura desse período desenvolveu-se como reflexo do Barroco literário espanhol e português.
b) A evasão no tempo e no espaço, bem como o namoro com a morte, são temas comuns nos poemas barrocos.
c) Gregório de Matos Guerra é um dos mais destacados representantes da poesia barroca brasileira.
d) O jogo de claro-escuro, as antíteses, a abundância de pormenores, as inversões sintáticas violentas são algumas características formais do Barroco.
e) A prosa barroca está representada no Brasil pela oratória sacra dos jesuítas, destacando-se nela o nome do Padre Antônio Vieira.

19. Com relação ao Barroco brasileiro, assinale a alternativa incorreta.                                  
a) Os Sermões, do padre Antônio Vieira, elaborados numa linguagem conceptista, refletiram as preocupações do autor com problemas brasileiros da época, por exemplo a escravidão.
b) Os conflitos éticos vividos pelo homem do barroco corresponderam, na forma literária, ao uso exagerado de paradoxos e inversões sintáticas.
c) A poesia barroca foi a confirmação, no plano estético, dos preceitos renascentistas de harmonia e equilíbrio, vigentes na Europa no século XVI, que chegaram ao Brasil no século XVII, adaptados, então, à realidade nacional.
d) Um dos temas principais do Barroco é a efemeridade da vida, questão que foi tratada no dilema de viver o momento presente e, ao mesmo tempo, preocupar-se com a vida eterna.
e) A escultura barroca teve no Brasil o nome de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, que, no século XVIII, elaborou uma arte d tema religioso com traços nacionais e populares, numa mescla representativa do Barroco.

20. Em sua obra, Gregório de Matos Guerra.                                                                         a) Cantou a bravura e a força do colonizador português em poemas épicos repletos de figuras mitológicas.
b) Louvou a beleza natural do Rio de Janeiro e elogiou a miscigenação racial, particularmente os casamentos entre brancos e negros.
c) Criticou a escravidão e defendeu a autonomia política da região, submetida à Coroa Portuguesa.
d) Criticou a vida colonial e ridicularizou membros de quase todos os setores, das autoridades portuguesas aos escravos.
e) Recordou nostalgicamente sua infância e os membros de sua família (pai, mãe e irmã).



Gabarito:
01. D        02. D         03. E        04. V, V, V, F, F           05. D
06. A        07. C         08. A        09. V, F, F, F, V           10. V, V, F, V, V

11. B        12. A         13. D        14. E                            15. C
16. B        17. A         18. B         19.C                          20. D